Miséria conjugal
Foi uma paixão incendiária. Um fogo que se consumiu a si mesmo. Ela foi se cansando todas as vezes em que ele urinava para fora do vaso, em que ele reclamava do tempero da comida, derrubava tudo no chão e achava que ela devia ser como as mulheres de suas revistas de mulheres nuas, como nos filmes...Todas as roupas que lhe dera ela detestava usar e não sabia direito o que queria, mas sabia muito bem do que não estava a fim.Teria sido preciso encarar tudo realisticamente sem perder a ternura, mas ele não lhe perdoava rugas, celulite e um olhar cada vez mais opaco que ela ia aprensentando quando se declarava cansada de tudo e da vida. Não havia filhos e ele era o filho grande que não percebia que reclamava da mãe uma atenção de criança que talvez nunca tenha tido e por isso sua carência era como um bolso puido onde se depositam moedas que caem sobre o chão. Sempre achava que havia pouca comida para o jantar e que poderia ter mais isso ou mais aquilo daqui e dali. Ela queria mudar completamente de vida e sempre se acomodou nas situações desagradáveis e cômodas, pois não tinha impetos de construir uma vida, um destino como o que sonhava e gostaria. Construia um pouco e incrustava-se outro tanto, num canto, magoada, culpada e insatisfeita consigo mesma até que recebesse algum estímulo externo, como um choque pequenino da tomada que trouxesse alegria e a fizesse reiniciar suas atividades, nem sempre em dia, mas com um capricho que aprendera da mãe que reclamava muita ordem e elogiava o cuidado por vezes obsessivo que tinha como acabamentos. Aquilo a fazia tornar-se muito briguenta e ranzinza com ele que buscava consolo na imagem de outras mulheres e em flertes levianos e descomprometidos que só mesmo pode possuir o homem casado.
Leu a letra de uma música num blog. Era uma tradução e percebeu que um rompimento de relacionamento outrora amoroso era como uma espécie de revelação tão mística quanto aquela de um crente que repentinamente se livra de um "deus" vingativo que possuia desde criança, que não o perdoava por nada e lhe causava terror em vez de lhe trazer proteção. Descobriu que não amava mais aquele homem e lhe disse isso com todas as letras. Ele não se importou e aceitaram tão friamente essas suas realidades que fizeram planos para o futuro, um futuro onde só estariam na memória um do outro, sem culpas, sem disputa por objetos materiais e com um certo carinho que se colocava sem mesclar-se a razão pura e reflexiva de dois fleumáticos. Aquele carinho que sobrou era a única força que restava aos dois para começar de novo.
Mas minto, ela desejou que fosse assim no seu caso, mas
o pessimismo do esposo não permitia nem a ele e nem a ela mesma que um passo além fosse dado na vida quando o medo do futuro os paralizava e assim estiveram um de fronte ao outro num jantar triste sem dizer palavra alguma enquanto sorviam uma sopa, preparada com os restos que haviam na geladeira e que lhe ardia nos dentes de tanta pimenta, mas seria preciso mais de trezentas vezes temperar assim para que neles se movesse um músculo qualquer da face e esta cena me lembra, não sei porque, os comedores de batatas de Van Gog, mas eles não eram pobres, nem feios, nem doentes. Então o que é que lhes faltava?
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