Crianças de minha vida
Tive várias crianças com quem convivi, brinquei e amei.
Ontem estava lembrando delas e de vez em quando faço uma pesquisa para ver como estão. Algumas casaram, passaram em concurso público, tornaram-se hoje profissionais.
Vou falar de uma criança tímida, de sorriso acanhado, cabelos negros e compridos, escorrendo em cachos ou ondas, pele branca com um algumas sardas, olhos rasgados que trazia em si segredos oriundos de um Oriente Médio distante e de contos de fadas muito antigos que nossas avós contaram um dia. Tinha nos olhos uma cor indefinida que lembra alguns cristais de um marrom azulado translúcido. Preferia conversar sempre nos cantos aos cochichos, não espondo-se socialmente. Tornou-se uma mulher muito bonita. Quando lhe despertou o corpo um frenético cio da existência, não havia desodorante que bastasse, não havia lenço que aplacasse o suor e seu rosto não podia mais conter seus segredos a se tornarem muitos. Exalava sexo e compreendendo isso procurava disfarça-lo sem recursos. Saiu pelas noites nas ruas, encontrando diversos homens a lhe desejarem, homenos dos mais diversos modelos e tipos, ricos pobres, gordos, magros, altos, inteligentes, bobos e um vampiro, o homem a quem a princípio mais ela admirou, cravou-lhe os dentes no pescoço desde logo pode ao colocá-la para dentro de um caro de luxo. Era um vampiro muito belo e ela em seus olhos tão inocentes de uma santa penetrou no mundo dos mortos mais cedo do que deveria, pois com a cruz de anciata e o namorado tinha passaporte, só lhe faltava saber o que não havia em nenhum manual de instruções: como retornar da forma como nele penetrava sem depositar nas sombras a sua luz. Mas continuou a viver cada vez menos entre nós. Não ia a festinhas de aniversário, não aparecia nos encontros de famílias e nem nos encontros juvenis. Quando entrou em sua puberdade despertou como uma flor roxa, exótica, do reino das orquídeas tornando-se exuberante. Alguns temiam nela a luxúria. Muitos a queriam salvar, tamanha era a sua beleza a banhar-se de lua e a esquivar-se do sol, assustada, a temer até o pânico um fracionamento já existente em sua vida.
Drogou-se. Ando entre drogados. Nem sei que tipo de drogas chegaram a usar, mas acho que apenas maconha e cocaina. Engravidou. Arranjou alguns empregos e não conseguiu mais estudar, pois havia sido muito mal tratada na escola. Não fora defendida, mas acusada, somente acusada. Era incompreendida, sentia-se perseguida, tornava-se perseguida também. Muitas meninas tinham inveja dela, pois despertava o interese imediato dos rapazes. Bem alta e longilínea seu encanto era sensual e seu rosto em seus traços provocavam mistérios e desejos. Um rico poderia querê-la num vestido negro e longo, com a cintura marcada, brincos e colar de diamantes a descer solenemente uma escada, mas teria dela muito zelo como quem cuida de uma das suas propriedades. E ela não poderia ter o que era seu pelas próprias forças, visto que lhe pediram suas forças e ela as ofereceu de maneira irretornável à um exército de aflitos a sugar-lhes o peito.
Sua hora era depois da meia-noite. Agora queria dinheiro, pois lhe exigiam dinheiro. Muitas ameaças. Chantangens misturavam-se a nuas verdades, verdades destas que deixam todos nus e envergonhados. E a decisão foi não ouvirem mais suas mentiras. Mas, ela apanharia se dissesse a verdade, de chicote e muito, pois seu feitor era furioso e sádico quando tornava-se então de repente um menino e ela uma santa a consolar-lhe da dor profunda da existência, do inferno a astral a consumir seus dias nos horrores infernais de uma mente alucinada. Era muito amada. Tão amada e bela, em outro meio pareceria uma santa a ter muitos favores. Mas, assim como está não parece uma santa, mas a sua santidade é pura em compaixão e inocência de todo mal que nela se prende de uma forma superficial se a vida não lhe deixa uma saída invisível.
No seu peito a cruz de anciata, dos inicidados em magia. Uma bruxa, uma fada... O encanto dos descobrimentos sutis esquecidos nela bem no fundo. Teria ainda sua cruz oferecida por aquele que num pupuri espiritual confuso ofereceu-lhe junto seus preconceitos. Poderia aceitar preconceitos e fantasias ou escolheria o caminho da miséria para negá-los, pois que amava a poesia e o sabedoria da alma e quando pequena criava alguns textos carinhosos para oferecer para as pessoas.
Eu a vejo descalça, branca, de longos cabelos mal cuidados em desalinho, a pisar as pedras frias. No seu ventre percebo muita dor que sobe até o coração. Amou os seus bebês e perdeu uma criança, a criança impossível de ter nascido que todos imaginavam que pudesse nascer sofrendo e tinham receio da dor, da angústia do medo e nem vou dizer mais do quê.
A minha menina desapareceu. Talvez tenha tido por muito tempo seus pés na pedra e de súbido lhe veio uma menstruação esvaída fazendo-lhe perder de súbito todo o seu sangue das entranhas. Não pode ficar mais branca do que era e seu rosto translúcido revelou a santa que havia na mulher solta na vida a pedir, a furtar, a desejar uma mãe, um carinho, um resgate, uma internação ou tratamento médico que sempre achou que não desejava, que não queria. Quando pedia outra coisa achava que somente algum dinheiro poderia obter para continuar vivendo e cuidando da sua nova família aflita e doente, uma legião de mal cuidados que cuidavam uns dos outros.
Em meio a névoa desaparece e continua a causar emoções, a fazer perder o sono. Tão difícil vida, tão difícil saída. Onde andará ela depurada no sofrimento, execrada e combatida, abandonada, com a qual não soubemos lidar?
Para os que a sabem amar pela sua virtude, por tantos e por ela mesma quem sabe negada, resta um sofrimento em sua presença e em sua ausência. No fundo queremos o seu resgate, inocente entre nós, com seu sorriso tímido, como se escondesse muitos segredos, a amar desde cedo os bebês, querendo ser pediatra a embalar suas bonecas e depois aos seus filhos pequenos e os já crescidos. Ela tem esta coisa de Maria e de mãe e encarna a Deusa da Fertilidade tão maltrada entre nós. Resgatar esta menina não seria bom para o resgate da Alma do Mundo?
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